E aí? Como julgar, se o processo não oferece elementos suficientes ou se a situação não está clara o bastante para o juiz?
O juiz, em seu árduo ofício de
julgar, muitas vezes se depara com situações intrincadas que deixam em
dúvida o mais sagaz dos observadores. Há situações em que a letra fria
da lei não pode ser interpretada em sua literalidade e as provas não dão
margem a certezas. Um verdadeiro xeque-mate jurídico. E aí? Como
julgar, se o processo não oferece elementos suficientes ou se a situação
não está clara o bastante para o juiz? Na Roma Antiga bastava aos
magistrados uma palavrinha mágica para escaparem desse angustiante
dilema: "non liquet". Com isso o juiz declarava que a situação não
estava clara o bastante para ser julgada e pronto! Estava livre do
julgamento. Mas isso é passado, e bem distante. No Direito brasileiro
esse estratagema não é permitido. Os juízes são obrigados a se
pronunciar sobre todas as demandas trazidas à sua apreciação, como
garantia do direito de acesso à Justiça.
Recentemente, caiu nas mãos do juiz titular da 24ª Vara do
Trabalho de Belo Horizonte, Ricardo Marcelo Silva, um caso que despertou
no julgador saudades do velho brocado latino:
Um empregado, às vésperas de completar o tempo para a
aposentadoria, após mais de 20 anos de serviços prestados à mesma
empresa, foi dispensado sem justa causa. Ele invocou a estabilidade
convencional, prevista na cláusula 29 dos instrumentos coletivos da
categoria, pela qual o empregado que completar cinco anos de serviço na
mesma empresa, estando a 12 meses de adquirir direito à aposentadoria,
terá estabilidade até completar o tempo que lhe garantirá o direito ao
benefício previdenciário. E em favor da sua pretensão, o trabalhador
apresentou farto documental. O que a ré, uma associação de profissionais
liberais, refugou, dizendo que a dispensa se dera nos limites da lei.
Isso porque, o parágrafo 3º da mesma cláusula que ampara a pretensão do
ex-empregado, alberga a sua escusa à concessão da estabilidade. Lá está
escrito que a estabilidade provisória de 12 meses pré-aposentadoria só
será adquirida "se o empregado beneficiado comunicar à empresa por
escrito, com data e sua assinatura, mediante protocolo firmado pela
empresa, portanto, sem efeito retroativo, devendo ainda apresentar à
empresa no prazo máximo de 30 (trinta) dias úteis, a contar da data da
entrega, a documentação comprobatória da aquisição desse benefício junto
à Previdência Social". E essa condição, alegou a associação, o
ex-empregado não cumpriu.
"Coube a mim, modestíssimo juiz, dizer que tem
razão. Não posso fazer feio, mesmo porque não tenho a liberdade de
pronunciar o 'non liquet'. Que o diga o art. 126 do CPC
moribundo", lamentou o juiz em sua sentença. E após tudo analisar,
concluiu que "a sábia e justa previsão convencional veste, sem folgas, o
manequim do reclamante".
Isto porque, à época da dispensa, em 27/04/12, ele contava quase
20 anos de casa e trouxe farta documentação a comprovar que preenche os
requisitos para a aposentadoria, nos termos da Lei 8.212/91. Mesmo assim
a ré optou pela dispensa sem justa causa, alegando desconhecimento da
situação previdenciária do autor."Malgrado os dizeres do aludido § 3º, a
princípio, agasalharem a pretensão patronal, eu não lhe empresto a
interpretação primeira e açodada. Dou a conhecer meus fundamentos:
inciso IX, art. 93 da Constituição", proclama, invocando a norma pela
qual todos os julgamentos do Poder Judiciário devem ser públicos e
fundamentados.
E o magistrado foi buscar respaldo para sua decisão no artigo 8º
da CLT, que diz que, na falta de disposições legais ou contratuais, os
juízes deverão decidir com base na jurisprudência, por analogia, por
equidade, de acordo com os usos e costume e outros princípios e normas
gerais de direito, desde que nenhum interesse de classe ou particular
prevaleça sobre o interesse público. Explica o julgador que esse artigo
tem origem no princípio protetivo que informa o Direito do Trabalho e
que se desdobra em outros dois: os que orientam no sentido da
interpretação mais favorável e da preservação da condição mais benéfica
para o trabalhador. E, munido dessas lentes, encerra a questão: "No
caso, a vedação da prevalência do interesse particular sobre o público
incide em favor do autor, na medida em que, creio, não é humano permitir
que um trabalhador, com a idade do autor, prestes a se aposentar, tenha
ceifado, sem dó e nem piedade o modo que lhe permita completar o
direito àquele básico e sagrado direito. A realidade da vida nos dá
conta de que um cidadão nas condições do autor, praticamente está
descartado do mercado. É visto como estorvo. E isto contraria a regra
basilar de nossa existência humana que é a de sermos solidários uns com
os outros" , pondera, destacando que a nossa Constituição, batizada de
cidadã, alçou como valores máximos da República a dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
No mais, pontua o juiz, o empregado foi diligente e, quando ainda
lá trabalhava, apresentou ao empregador um comunicado de que, a partir
daquele momento, era portador de estabilidade provisória, nos termos da
cláusula 29 da CCT, embora não tenha ali apresentado os documentos
previdenciários respectivos, como determina o parágrafo invocado pela
associação. "Só que tem que a ré não deu a menor bola para o conteúdo
daquele documento, quando tinha e tem plenas condições de, mediante
simples acesso ao sistema da Previdência Social, (...) conferir a sua
condição previdenciária de sorte a rever, por si mesma, (...) a decisão
cruel consistente na demissão", frisou o julgador e com isso fundamentou
a decisão de não conceder à ré a interpretação literal do parágrafo 3º
da cláusula 29 da CCT.
Postos esses fatos, o juiz considerou presentes no caso os
requisitos para o reconhecimento da estabilidade convencional alegada
pelo reclamante e julgou procedente o pedido de reintegração no emprego.
Também entendeu reunidas as condições do art. 273 do CPC e concedeu a
antecipação dos efeitos da tutela para determinar a imediata
reintegração do empregado, nas mesmas condições anteriores e com todas
as consequências jurídicas que isso gera, ou seja, é como se o contrato
nunca tivesse sido rompido. A associação deverá pagar os devidos
salários vencidos e vincendos, acrescidos de reajustes e demais verbas
salariais. "Espero tenha sido claro", arrematou o juiz. E foi. Mas a
associação, inconformada, apresentou recurso. Agora é aguardar a decisão
do TRT de Minas para ver como fica a história.
(Processo nº 00001458-54.2012.503.0024)
Fonte: TRT MG
Abraços...